Terras de Basto na Literatura

Terras de antigas origens e de fortes tradições, as Terras de Basto influenciaram a vida e obra de dois dos maiores escritores portugueses. Camilo Castelo Branco, escritor do século XIX, foi percursor do romance na Península Ibérica. Francisco Sá de Miranda, poeta do século XVI, introduziu o Renascimento Literário em Portugal. Ambos passaram pelos concelhos de Basto e os deixaram na sua obra.



Camilo e as Terras de Basto



“Os fidalgos de terras de Basto vão-se acabando. Tenho pena e saudades, aqui há trinta anos, com os brasões e apelidos das famílias heráldicas de entre Vizela e Tâmega recompunha-se a história lendária de Portugal.”
(«O filho natural», in Novelas do Minho)


A ligação de Camilo com as Terras de Basto tem uma duração breve mas que marca definitivamente a sua vida, facto que se reflectiu na sua literatura ao ponto de ser um dos maiores divulgadores da região e suas tradições.




As Terras de Basto no século XIX


Na época em que Camilo passou por estas paragens (1840-1843), a estrutura administrativa nas Terras de Basto era muito diferente. Aos quatro concelhos actuais juntavam-se Cerva (hoje no concelho de Ribeira de Pena), Atei e Ermelo (hoje ambos no concelho de Mondim de Basto), e os limites da região tinham, em algumas freguesias, um traçado diferente.
A importância dos mosteiros de São Miguel de Refojos, outrora o mais rico do Minho, e de São João de Arnóia perdera-se com a extinção das ordens religiosas em 1834. É uma época de grande ligação com o Brasil para onde muitos emigram, garantindo a riqueza da região.
Assim, com cerca de 15 anos Camilo vem para Friúme, povoação junto ao Tâmega no concelho de Ribeira de Pena, à época de grande importância comercial. Aí conhece Joaquina Pereira de França, filha de um comerciante de Gondomar que, fugido ao Cerco do Porto, se estabelecera nesta povoação. Com Joaquina acaba por casar na Igreja do Salvador (Ribeira de Pena) em 1841, ele com 16 anos, ela com 14, casamento de que resultará uma filha, Rosa, que ele nunca conhecerá. Este casamento deu a Camilo liberdades que antes não possuía e deu-lhe ainda acesso à herança a que tinha direito por morte de seu pai. Camilo vive então
com a sua esposa numa casa junto à de sua prima, que é hoje o edifício mais emblemático da povoação. Além das aulas com o Padre Manuel na Granja Velha, foi ainda amanuense do tabelião José de Mesquita Chaves na povoação onde residia e onde aprendeu a jogar às damas e ao gamão com o boticário Macário Afonso.


“Macário saiu de Celorico de Basto e foi administrar outra farmácia de uma viúva, dali quatro léguas, onde eu estudava latim. Ali o conheci. Teria cinquenta anos. Foi meu mestre de gamão e de damas.”
(«O filho natural», in Novelas do Minho)



No ano a seguir ao do seu casamento, sob o pretexto da ameaça de um “morgado visigótico”, Camilo abandona Ribeira de Pena, Joaquina, Rosa e as Terras de Basto para não voltar. A prisão do casamento, a pressão do sogro para seguir os estudos (que nunca viria a terminar) e o desejo liberdade terão pesado na sua decisão.


“Naquela terra andavam às más dois irmãos de fidalga prosápia, à conta do casamento desigual que um deles intentava fazer contra a vontade do mais velho. Por parte dos sequazes deste me foram pedidos uns versos em que a noiva menos fidalga e o apaixonado mancebo fossem chanceados à conta de não me lembra que antecedências muito ajeitadas à galhofa métrica. Deu-me soberbas uma incumbência deste género! Poeta e demais a mais requestado para intervir com minha opinião em casamento tão falado nas vinte aldeias circumpostas! Escrevi uma folha de almaço em quadras, que os interessados na publicidade afixaram na porta da igreja, momentos antes da missa das onze horas. O boticário, que seguia as partes do morgado, lia a sátira à populaça, que ria às escâncaras. E eu de lado a rever-me na obra e a saborear-me nas alvares cascalhadas do gentio! Por um cabelo que não fui então mártir do génio! A vítima crucificada na porta da igreja não era das que dizem: “Senhor, perdoai ao poeta que não sabe as asneiras que diz!” Apenas lhe constou que era eu o instrumento da vingança de seu irmão, preferiu quebrar o instrumento, e deixar não só o fidalgo, que também o boticário em paz. Poeta era eu só naquela quadra de dez léguas; avisadamente conjecturou o homem que, esganando
a musa que o verberara, abafaria aquele respiráculo de detracção inimiga. O padre-mestre avisou-me horas antes da espera e da sepultura. Fugi com o magnum lexicon debaixo do braço, e com os ossos direitos que aquela terra ingrata me queria comer.”
(Ao anoitecer da vida)


Mas não é só Ribeira de Pena a terra de Basto que merece a atenção do escritor. Celorico é referenciado em “O filho natural” e Cabeceiras é referenciada em “A Bruxa de Monte Córdova” e na obra “Noites de Lamego”.



“O capitão-mor de Cabeceiras de Basto morria por ela. Dois frades bentos de S. Miguel de Refojos andavam como energúmenos desde que a lobrigaram na igreja.
O juiz ordinário, o alferes Milícias, o juiz dos órfãos, o escrivão das Sisas, o boticário e o mestre-escola farejavam-na, tanto à inveja, que a rapariga, quando eles, um por cada vez, se lhe faziam encontradiços, resmoneava, formando com os dedos uma figa oculta:


- Eu tarenego, diabo! E apertava o passo com os olhos no chão e o credo na boca.”
(A Bruxa de Monte Córdova)


Sá de Miranda e as Terras de Basto


Ao contrário de Camilo, que viveu em Ribeira de Pena, Francisco Sá de Miranda teve menor ligação com as terras de Basto, ligação que se limitou a Cabeceiras de Basto. Natural de Coimbra, onde nasce em 1481, doutor em Direito pela Universidade então estabelecida em Lisboa, frequentador e trovador da corte, a sua viagem por Itália e Espanha permitem-lhe conhecer as novas formas literárias do Renascimento que introduz em Portugal.
Após o regresso, a sua desadequação com as intrigas da corte levam-no a abandoná-la e a retirar-se para o Minho. O seu casamento com uma fidalga minhota e a comenda de Duas Igrejas que o rei D. João III, seu amigo pessoal, lhe atribui conduzem o poeta até ao concelho de Amares onde fixará residência definitiva, primeiro em Duas Igrejas, junto ao Neiva, que caracteriza a fase mais produtiva e feliz do poeta, depois na Quinta da Tapada na fase final da sua vida. A proximidade de Amares com Cabeceiras de Basto, a fidalguia cabeceirense, a importância do mosteiro de S. Miguel de Refojos e a história de D. Nuno Álvares Pereira terão cativado a proximidade com este concelho que culmina com o casamento de seu filho na Casa da Taipa, ainda por ele contratado e que se realiza já após a sua morte. Desta ligação ficou a “Carta a Dom António Pereira, Senhor de Basto”, e a écloga “Basto”, dedicada ao Condestável e cujo título provém, tudo indica, desta região.



As Terras de Basto no século XVI



A época em que viveu Sá de Miranda é uma época de alterações administrativas na região de Basto. No início do século existiam os concelhos de Pena (Ribeira de Pena), com foral de D. Afonso IV (1331), Mondim e Ermelo (1196), ambos com foral de D. Sancho I. Com a política dos
forais novos de D. Manuel I, não só são renovados os forais de Mondim (1514) e Pena (1517), como são concedidos forais a Cabeceiras (1514), Cerva (1514), Atei (1514) e Celorico (1520) e a criação dos respectivos concelhos. É a época áurea da expansão portuguesa que leva muitos à aventura do ultramar em busca de riqueza, o que permite a construção de algumas capelas e casas brasonadas da região. É também provável, na primeira metade do século, a construção de uma ermida antecessora do Santuário de Nossa Sr.ª da Graça.



As Terras de Basto na literatura de Sá de Miranda


A ligação do poeta com Cabeceiras de Basto é visível em duas das suasobras. A primeira é a carta “A António Pereira Senhor de Basto, quando se partiu para a corte co’a casa toda” e começa da seguinte forma:

“Como eu vi correr pardaus
Por Cabeceiras de Basto,
Crecerem cercas e o gasto,
Vi, por caminhos tão maus,
Tal trilha e tamanho rasto

Logo os meus olhos ergui
À casa antiga e à torre,
E disse comigo assi:
Se Deus não vai mal aqui,
Perigoso imigo corre.


Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa.”


Nesta carta, dirigida ao fidalgo que troca sua casa pela corte em busca de riqueza e glória, o poeta deixa conselhos de alguém que conhece ambas as realidades, realçando os valores antigos, o gosto pelo campo longe da mesquinha vida da corte e a ligação do homem à terra, não faltando a sua arrojada crítica aos novos hábitos.


“Todavia há diferenças
Entre o de cá e o de lá:
Cá, nas mais das desavenças,
Éreis mestre das sentenças;
Para ond’is outrem as dá.”
(...)
“Dos vossos nobres avós
As cruzes em sangue abertas
Vos põem obrigações certas
Que não as deixeis cá sós,
A ser do musgo cobertas.


O que porém não dirão
Em quanto cá tem tal feira,
Como é a de tal irmão,
Que não houve o nome em vão
De Nuno Álvares Pereira.”



E conclui...


“Lembro-vos as vossas fruitas,
Lembro-vos as vossas truitas,
Que andam já por vossas n’água.”


Entretanto, utiliza o rural dia-a-dia em Cabeceiras como exemplos de pureza e virtude.


“A vossa fonte tão fria
Da Barroca, em Julho e Agosto,
Inda me é presente o gosto!
Quão bem que nos i sabia
Quanto na mesa era posto!


Ali não mordia a graça,
Eram iguais os juízes.
Não vinha nada da praça:
Ali da vossa cachaça.
Ali das vossas perdizes.”



Na écloga “Basto”, a mais extensa composição de Sá de Miranda com grande carácter moralista, é apresentada uma discussão entre dois pastores, um extrovertido e social que segue os costumes, outro introvertido e individualista que procura a liberdade na solidão e onde se personifica. A única ligação com Cabeceiras é a sua dedicatória a NunoÁlvares Pereira, o bravo senhor das Terras de Basto, que justifica o título.



In: Pessoas e Lugares, nº 52, 2008


http://www.leader.pt/PESSOAS_LUGARES.htm




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